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SEGURANÇA

 

- Segurança é algo muito conveniente, na minha idade.

A frase de Arnaldo saiu necessária, naquela gôndola da seção de iogurte, margarinas e leite pasteurizado, do supermercado aonde ia, todas as semanas, fazer sua despensa.  E foi dita a respeito do comentário que o vizinho fez da senhora que reclamou do desemprego, na prateleira dos embutidos.

Talvez, se fosse outra pessoa a dizer aquela frase, ele não tivesse dito “conveniente”, mas “imprescindível” ou “justo” ou mesmo “de responsabilidade governamental”. Qualquer dessas palavras politicamente corretas. Mas Arnaldo estava na companhia do vizinho, com quem convivia há mais de 40 anos, e com quem se sentia à vontade para dizer o que realmente pensava.

Com o vizinho falava coisas preconceituosas contra gays, contra pretos, falava dos seios enormes da moça que atendia no caixa preferencial, falava bem da classe a que pertencia, elogiava o governo com orgulho. Arnaldo era militar aposentado de alta patente.

O que ele quis dizer com “conveniente” era precisamente isso: que ele, militar e aposentado, podia ter a segurança de não sofrer pela falta de dinheiro no fim do mês. Podia adoecer tranquilo, porque sua entrada no hospital militar estava garantida, afinal seu último posto de comando tinha sido, justamente, como diretor daquele hospital. Podia rodar com seu carro pelas ruas, sem ser incomodado. E, se fosse, “boto pra correr essa turma escrota com meu 38!”, como gostava de dizer em casa e pro vizinho. Sabia que não tinha porte nem posse de arma, mas nada lhe aconteceria, “um telefonema meu resolve isso”. Era uma frase-feita que repetia, em muitas ocasiões.

O vizinho sabe bem o peso dessa frase, pois precisou dele no dia em que atropelou um ciclista e ligou, desesperado. Na hora em que o delegado ouviu o nome de quem estava do outro lado da linha, liberou o motorista, que havia sido preso em flagrante e sido reprovado no teste do bafômetro. “Meu nome ainda é forte nessa cidade”, disse ao vizinho, que foi agradecer-lhe pela ajuda, uma semana depois, com uma garrafa de vinho importado – dos melhores!

Arnaldo sempre fazia supermercado sozinho. Não deixava dona Iolanda ir com ele, apesar de ela também ser aposentada. ‘É conveniente que eu vá só, minha querida. Você fica cuidando das crianças’. As crianças eram seus dois netos, que viviam pela sua casa, e dois cachorros, desses pequeninos e cheios de pelos e lacinhos pendurados.

E ele ia sozinho. Toda semana, ao menos duas horas fazendo a despensa. Quando calhava de encontrar o vizinho na saída de casa ou mesmo já no supermercado, faziam juntos as compras. E iam juntos para a fila, demoravam mais do que deviam no caixa da moça de seios fartos.

Um dia, no começo da seção de azeitonas, molhos de tomate e outros enlatados, Arnaldo parou o carrinho com uma leve dor no peito. Ninguém estava naquela seção, era dia de supermercado vazio, meio de mês. Ele botou a mão no peito, quando sentiu a segunda pontada, essa mais forte. Depois o braço ficou morto e a voz sumiu. Arnaldo caiu, ainda tentando se segurar no carrinho.

Foi a moça de seios enormes que o viu ali, caído de bruços, com um saco de tomates na mão. De pronto não o reconheceu, até virá-lo e ver que era o doutor Arnaldo, o velhinho sorridente que sempre lhe dava “Bom dia!” e elogiava seu cabelo.

Marcela ligou para o SAMU do seu celular, porque não teve acesso ao telefone de Arnaldo. Aquele telefone que resolvia tudo...

 

MARCOS FÁBIO BELO MATOS escreve às terças-feiras para o Textual.

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