Conversas Vadias
O HOMEM-TIJUBINA & OUTRAS CIPOADAS
ENTRE AS FOLHAGENS DA
MALÍCIA*
“A Secretaria de Estado da Educação
(Seduc) manifesta imenso pesar pelo falecimento do professor Francisco de Assis
Carvalho da Silva Júnior, 35 anos, ocorrido nesta terça-feira (30). Carvalho
Júnior era gestor do Centro de Ensino Gonçalves Dias, escola da rede pública
estadual, localizada no município de Caxias”.
O professor, ativista
cultural e poeta Francisco de Assis Carvalho da Silva Júnior, ou simplesmente
Carvalho Júnior, chega pela terceira vez ao ‘Panteon das Letras do Maranhão’
com este seu belo livro de poemas, edição bilíngue, cujo título nomeia este
dedo de prosa. O livro é de uma feição gráfica extraordinariamente bonita, a estampar
em toda a extensão da capa e contracapa, o desenho mítico do homem-tijubina,
impresso em papel linha d’água, poroso como nuvem, onde levitam versos de
mestre.
O poeta Carvalho Júnior
tem pela palavra a mesma fascinação que o lagarto tem pela solidão das pedras,
como diz o nosso genial Manoel de Barros, e assim, o poeta nos apresenta este
‘homem-tijubina’, dizendo que ele “tem um paladar exigente, não digere o ovo do
óbvio, somente silêncio de pássaros lhe passam pelos gorgomilhos, quando o
indagam a respeito desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso,
não tem idade, apenas caminha, às vezes, para a frente quase sempre para o
fundo do poço que guarda as lágrimas dos seus ancestrais, é um composto de
cortes de unhas-de-gato e incoerências”.
Depois dessas
“incoerências”, o poeta vai buscar Fernando Pessoa, o qual traz consigo ‘outras
cipoadas entre as folhagens’ e, como se estivesse a sair do ‘Martinho da
Arcada’, pondera: “talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam
o rabo. E é rabo para aquém do lagarto remexidamente”, do que se aproveita
Carvalho Júnior para dar subjetivamente uma boa cipoada, com estes versos
magistrais: “talvez tijibunda me chamasse, / não seria com o poeta, / invisível
aos olhos do homem.”
Enquanto o rabo do
lagarto ziguezagueia aquém dele, lagarto, este se remexe também além do rabo
cortado [confesso que nos meus solilóquios gostava de ver e fazer isso em meu país
de infância, cortar o rabo de osgas, ‘tarentola mauritanica’, bichinhos
viventes nas paredes dos casarões de São Luís... tive remorsos por algum tempo,
até quando me disseram que a natureza recompunha o rabo amputado]. Realmente, o
rabo cortado continua a mover-se, motorizado pelos nervos do lagarto provisoriamente
tocó, suro..., mas que logo, logo, renasce!...
Vejamos o que diz o
poeta Carvalho Júnior nessa outra cipoada, nestes versos magnificamente
perfeitos: “única espécie de silêncio permitida na casa/ das tiranobinas: o
medo. / serei birra e palavra enquanto folclores/ e fôlegos me rastejarem.”
Continua o poeta
caxiense a cantar entre a folhagem da malícia: “como em manhãs de domingo, / em
que versos de herberto descobrem, / do quintal da infância, o portal aberto”
[...] “o mundo é em chicote/ arcovertebrado em anomalias, / a cauda amputada de
um calango/ achincalhando a nossa mãe”.
Vejamos este poema, a
formar uma oitava solta, que atende por tujibina’lma: “Das nenhumas almas que
tenho/ treze têm o corpo de tijubina,/ a cabeça esfolada de pedra,/ a carne
exposta ao sol da sorte./ a do que me chora em sangue/ é a mesma que em
quimeras ri / quanto mais me decepam o ânimo,/ mais recomponho a tinta da
teimosia”.
Neste poema não existe
em nenhuma de suas almas, nem mesmo nas treze restantes, um lugar-comum que se
possa repreendê-lo... É a metade da consciência anímica da tijubina, é a metade
do psiquê imaterial desse calango, que tem a outra metade homem para estragar o
seu todo. Se a tijubina fosse somente tijubina, seria muito mais feliz, e o
homem somente homem, talvez nem tanto...
Observemos durante o
canto que a tijubina é prefixo na sua identidade personalíssima, e sufixo nas
muitas adjetivações no processo kafkiano que tem de submeter-se, de acordo com
o cenário em que opera e vive... digamos que essa tijubina tem muito de
camaleão...
Nessa dúvida, o poeta
Carvalho Júnior foi mais adiante buscar a taxonomia científica do calango. Com
a formação em Letras e o espirito apurado há tempos nas lides literárias, o
poeta sabe manejar com grandeza estilística este nosso idioma em que Camões
cantou, chorou e pediu esmolas; assim, Carvalho Júnior brinca de efeitos com
figuras de gramática, como nesse ‘um espântano de cores’: “por mais tijuterna
que seja,/ a tijubina traz tijolos tensos / e uma carabina velha no dorso./ com
o movimento do rabo/ hábil, de lâmina oculta,/ ela mata com delicadeza/ as feiuras
do mundo-selva,/ um ‘espântano’ de cores/ que não morre debaixo/ da casca do
peito/ do homo lagartiens”... Eis aí a taxonomia científica desse calango
metade homem!
Aqui, Carvalho Júnior
chama o poeta Paul Verlaine, para que traga à tona de nossa percepção poética
estes ‘Pelos chãos da malícia pulsativa’... E o poeta francês chega a bradar
alto: “Le vent de l’autre nuit a jeté bas l’amour’” [O vento da outra noite
derrubou o amor.], talvez para chamar atenção de Arthur Rimbaud, enquanto o
poeta deste ‘homem-tijubina’ nos brinda com este poema ‘Araruta’, fazendo
provas aos maranhenses de boa cepa que esse farináceo também tem seu dia de
mingau.
Alegra-me dizer que
estes versos de ‘Araruta’, são dignos de se ombrearem com os do tresloucado Pau
Verlaine, autor de ‘Poemas saturninos’, o ‘magnum opus’ de sua poemática.
Escutemos o poeta Carvalho Júnior: “Somos feitos das mesmas fomes dos nossos
pais, / das mesmas lenhas que os guardaram/ do fio súbito das noites
caseadeiras de exílios. / De vez em quando, ouço de longe/ a voz da lágrima do
meu pai e de minha mãe. / Um quintal de ararutas nasceu dentro/ do chão cansado
dos meus olhos.”
Por fim, deixo com
alegria nesta prosa, para fazer companhia a esse homem-tijubina, uma lagartixa
ilustre que vive escondidinha desde 1853, nas páginas da ‘Lira dos Vinte Anos’,
pouca conhecida por muitos, mas que aqui, a arribitar a cabeça por entre os
ângulos das pedras, se faz anunciada nestes excertos pelo próprio autor, o
amado e romântico poeta Álvares de Azevedo: “A lagartixa ao sol ardente vive,
/e fazendo verão o corpo espicha:/o clarão dos teus olhos me dá vida, /tu és o
sol e eu sou a lagartixa. /Amo-te como o vinho e como o sono, /tu és meu corpo
e amoroso leito...”
Assim se prova que não
só de aves canoras sobrevivem os poetas, mas também de lagartixas e tijubinas!
______
*Fernando Braga, in ‘Conversas Vadias’, [Toda prosa], antologia de textos do autor.
Que texto ao nosso saudoso amigo Carvalho Junior. Onde ele esteja, está feliz.
ResponderExcluirSinto muitissimo! Fiquei sabendo agora através do Poeta Português Jorge Vicente.
ResponderExcluirGrande perda.
Abraço forte!