um passeio
pela ancestralidade negra
“Quando não souber para onde ir, olhe para trás e saiba pelo menos
de onde você vem” (Owomoyela, 2005 – provérbio
yorubá).
A ÁRVORE MONTADA DE ESPINHOS
O
sangue que corre nas veias
Reconstrói
o antigamente
Tantas
Marias passaram
Maria
Antonia
Maria
da Conceição
Maria
Raimunda
Maria
Luiza
Quebradeiras
de coco
Lavadeiras
Lavadoras
Benditas
sejam elas
Que
deixaram em mim
O dom
de assuntar a vida
E estes
pés que tocam o
Mundo
(Cantanhêde, 2023, p. 95).
O poema
"A Árvore Montada nos Espinhos", de Luiza Cantanhêde, é uma
celebração da ancestralidade feminina “como marca de resistências individuais,
mas sobretudo coletivas” (Manjate, 2023, p. 16). E
essa simbologia de resistências só existe quando reconhecemos o papel das
nossas antepassadas na construção das nossas identidades e na luta por
direitos, dignidade e reconhecimento.
O poema, portanto, foca nas
gerações de mulheres que desempenharam papéis centrais na sustentação da vida e no legado cultural,
evidenciando que “existe uma relação estreita entre mulher (negra),
atividade profissional de sustentação, identidade e ancestralidade” (Gomes;
Santana, 2023, p. 78), pois
No mundo do
trabalho, as mulheres negras vêm desenvolvendo atividades sustentáveis desde o
sistema escravista. Vamos encontrar escravizadas nas funções domésticas e como
lavadeiras, engomadeiras, costureiras, bordadeiras, rendeiras, charuteiras. Tal
constatação nos fornece a hipótese de que as profissões dessas sujeitas
surgiram ligadas a um saber-fazer que está incluso no rol dos legados africanos
(Gomes; Santana, 2023, p. 78).
Assim,
as mulheres do poema (lavadeiras, lavradoras e quebradeiras de coco) são
trabalhadoras manuais, inseridas em um contexto rural, marcadas pelo trabalho
árduo, mas também pela resistência e força. Elas são "benditas",
abençoadas pela sua dedicação, e seu legados vão além do trabalho físico; elas
deixam para o eu-lírico o "dom de assuntar a vida", ou seja, de entender,
perceber, e se conectar com o mundo de forma profunda e “os pés que tocam o
mundo”, ou seja, esses pés são uma extensão do legado, indicando que a conexão
com a terra e com a vida é uma herança direta dessas ancestrais.
Esse
contexto me remete às mulheres da minha família, as minhas ancestrais, no meio
das quais fui criada, avó, mãe e tias, que costuravam, bordavam, faziam
bolo e cuscuz para vender no mercado, lavavam roupa e quebravam coco babaçu
para manter a família. E ainda hoje se mantêm entre as suas descendentes os
ofícios do bordado e da costura. Desse modo, tanto as antepassadas do eu-lírico
quanto as minhas e de tantas outras pessoas foram/são “mulheres que estiveram
(estão) desenvolvendo atividades para o sustento” (Gomes; Santana, 2023, p.
79). E isso evidencia o valor da contribuição dessas mulheres para a formação
econômica e social de suas famílias.
Desse
modo, as "Marias" mencionadas são personagens coletivas,
representando não apenas mulheres específicas, mas um conjunto de figuras
anônimas que realizaram trabalhos fundamentais, embora invisibilizados
socialmente. A repetição do nome "Maria", que é muito comum no
Brasil, reforça essa ideia de anonimato coletivo, sugerindo que elas
representam todas as mulheres que desempenharam esses papéis.
Logo no
primeiro verso, o eu-lírico afirma que "O sangue que corre nas veias /
Reconstrói o antigamente". Essa metáfora do sangue como veículo de memória
e legado ancestral sugere que a herança dessas mulheres é algo visceral,
transmitido fisicamente e espiritualmente de geração em geração. O sangue é o
elo do presente com o passado, fazendo com que as experiências dessas
"Marias" permaneçam vivas.
Portanto, nesse poema, o eu lírico “olha para trás,
para a sua história”, semelhante à perspectiva “Sankofa”, “que é uma filosofia
africana representada pictoricamente por uma ave que gesta um ovo e que tem a
cabeça voltada para trás” (Pinheiro, 2023, p. 98), ou seja, isso significa que
“é só olhando de onde viemos (olhando para trás) que sabemos quem somos; e é só
sabendo de onde viemos e quem somos, a partir da nossa agência ancestral, que
conseguimos construir novos passos rumo à emancipação do nosso povo (Pinheiro,
2023, p. 99).
Ainda, na construção do poema, a autora vale-se da
anáfora de “Maria”, ao longo do poema para reforçar a ideia de que essas mulheres, embora diferentes em
nome e ocupação (Maria Antonia, Maria da Conceição, Maria Luiza etc.),
compartilham uma história comum de luta e trabalho. Essa repetição evoca um
coro de vozes femininas, cada uma contribuindo com sua parte para a construção
da identidade do eu-lírico.
"A
Árvore Montada nos Espinhos" é um poema que celebra a ancestralidade
feminina, prestando homenagem às gerações de mulheres trabalhadoras que, apesar
de invisibilizadas pela sociedade, deixaram um profundo legado de força,
sabedoria e resistência. Através de imagens poderosas, como o sangue que interliga
o passado ao presente e os pés que tocam o mundo, esse poema explora a ideia de
que a vida dessas mulheres não foi em vão — elas plantaram em suas descendentes
o "dom de assuntar a vida", uma forma sensível de perceber o mundo e
de continuar resistindo às adversidades.
O
título sugere que essa herança não veio sem sacrifícios, como a árvore cheia de
espinhos, mesmo assim, é uma árvore que continua a crescer e a florescer,
transmitindo suas raízes às gerações futuras. O poema, assim, se torna uma
celebração tanto do passado quanto do presente, mostrando que as lutas e os
esforços dessas "Marias" continuam vivos nas novas gerações.
Essa
percepção da autora fortalece a ideia de que as histórias e os legados
familiares são essenciais para a construção da identidade individual, lembrando
a filosofia africana ubuntu, “que se baseia no conceito de que eu não
posso ser feliz sozinha” (Pinheiro, 2023, p. 93). Então, o eu-lírico estabelece
“acolhimento e comunhão” com essas mulheres, ou seja, com “outras/os ‘eus’ que
carregam suas raízes identitárias, manifestadas no ubuntu do ser: ‘eu
sou porque tu és e tu és porque eu sou’” (André, 2023, p. 61).
REFERÊNCIAS
ANDRÉ, Sónia. Outras elas: a cultura pelo olhar das silenciadas. In: CONSORTE, Josildeth Gomes; SANTANA, Marise de (org.). Mulher negra e ancestralidade. São Paulo: Selo Negro, 2023.
CANTANHÊDE, Luiza. Plantação de Horizontes. Guaratinguetá: Penalux, 2023.
MANJATE, Teresa. A ancestralidade e a figura da mulher: entre rupturas e continuidades. In: CONSORTE, Josildeth Gomes; SANTANA, Marise de (org.). Mulher negra e ancestralidade. São Paulo: Selo Negro, 2023.
OWOMOYELA, Oyekan. Youruba Proverbs. University of Nebraska Press, 2005.
PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser educador antirracista. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.
Anna
Liz é poeta, escritora,
mestranda em Língua Portuguesa/Unifesspa
Fala de todas nós, mulheres, de uma forma ou de outra temos o pé fincado nessa ancestralidade.
ResponderExcluirVerdade. Somos nós todas, refletidas em nossas ancestrais.
ExcluirQue texto lindo e significativo! É um convite à reflexão sobre a importância de conhecer e valorizar a ancestralidade negra, destacando a riqueza da produção literária que nos conecta às nossas raízes.
ResponderExcluirA Importância da Ancestralidade
Conhecer nossa história e herança cultural é fundamental para entender quem somos e para onde vamos. A ancestralidade negra é uma parte importante dessa jornada, e a literatura é um veículo poderoso para explorar e celebrar essa riqueza cultural.
Parabéns!
Parabéns a Anna Liz e Luiza Cantanhede por compartilharem essa visão e por contribuírem para a valorização da ancestralidade negra através da literatura.
Esse trabalho é um passo importante para a reelaboração das condições do presente e para a projeção de um futuro mais justo e igualitário. Abraços Dilercy
Obrigada, Dilercy! É tudo isso mesmo. Precisamos falar mais sobre nossas raízes e a literatura é um importante espaço para isso.
ExcluirUma análise que muito nos emociona, porque temos a consciência do que somos à partir das (os) que nos antecederam! Anna é uma poeta de olhar profundo e sensível e uma pesquisadora de alto nível!; Obrigada a todos e todas pela leitura carinhosa 🥰
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