EDUARDO JÚLIO

a poesia como delicadeza de existir 

Foto: Geraldo Iensen


             Eduardo Júlio é um poeta maranhense que carrega no peito uma poesia que atravessa fronteiras físicas e emocionais. Natural de São Luís, mas com a infância vivida em Basra, no Iraque, ele traz em seus versos a mistura de culturas e realidades que moldam sua escrita. Seus livros, como Alguma trilha além (2005)O mar que restou nos olhos (2020)O sopro do lugar junto ao tempo (2022) Longo poente à deriva (2024) são reflexos dessa busca constante por significado nas entrelinhas da vida.

Alguma trilha além é o ponto de partida, onde Eduardo já revela sua sensibilidade poética ao explorar as pequenas trilhas da vida. Com o prêmio da Secretaria de Cultura do Maranhão, o livro é um convite a transitar pelas camadas invisíveis da existência, buscando o que está além do que se vê. Já em O mar que restou nos olhos (livro finalista do Prêmio Jabuti, em 2021), o mar torna-se a metáfora perfeita para o processo de perda e reencontro, onde as memórias se tornam espelho das emoções profundas. O olhar do poeta é um mergulho que revela não apenas o externo, mas também as águas turbulentas do ser.

O sopro do lugar junto ao tempo traz à tona a reflexão sobre o pertencimento, com o "sopro" simbolizando a vida e a transitoriedade dos momentos. Eduardo Júlio transforma o tempo e o espaço em elementos vivos, que moldam e transformam a experiência humana. Em Longo poente à deriva, o tempo se torna uma figura central. O título evoca a ideia de um poente distante, simbolizando a efemeridade e a busca por algo mais, como se a poesia fosse uma constante busca pelo que ainda está por vir

Nos anos 1990, participou das rodas de leitura e debates sobre poesia promovidos pelo Poeme-se. Sua obra, como seu próprio caminho, é uma travessia contínua, onde as palavras ganham vida e movimento, convidando o leitor a vivenciar cada verso de forma intensa e visceral. Eduardo Júlio é o nosso entrevistado da Revel.

 

Bioque Mesito Os livros chegam como quem se esqueceu de trancar a casa. Escreves para se esconder ou para ser encontrado?

Eduardo Júlio Certamente escrevo para ser lido, para ser encontrado. É bom ser descoberto ou reconhecido, mesmo que por uma parcela ínfima de pessoas. Mas escrevo, sobretudo, para satisfazer uma necessidade existencial. É uma exigência orgânica.

 

 

BM Em tua poesia, o silêncio parece sagrado. Mas e o sexo? Ele aparece nos versos, nos vácuos ou no que nunca se escreveu?

EJ Nunca planejo sobre o que vou escrever. A inspiração vem espontaneamente e pronto. É claro, existem fontes que motivam a escrita como os sonhos, as memórias, um filme, uma conversa que ouço ou pesco na rua e a própria poesia. Então, lembro de ter publicado alguns poemas com teor erótico no primeiro livro, ou seja, há muito tempo. Em geral, os meus poemas são contemplativos e existenciais, tratam do tempo etéreo, da passagem da existência e das paixões, mas em uma perspectiva onírica e memorialística. São caminhos que me movem a escrever. Portanto, não costumo abordar os sabores da pele. Não nessa perspectiva que você aponta.

 

 

BM Já rolou alguma situação absurda, engraçada ou constrangedora por causa da poesia? Conta uma dessas histórias.

EJ Nada que mereça ser relatado. Mas tem uma situação recorrente que me incomoda: quando me tratam como um poeta versejador, igual aos mestres populares do cordel, das toadas ou mesmo do rap e do slam, com habilidade para o improviso imediato de rimas e versos, como se eu fosse um jazzista das palavras, um cara pronto para o palco. Daí, explico que minha poesia segue numa direção completamente oposta. A inspiração vem nas horas mais inesperadas e passo muito tempo aperfeiçoando um poema. Além disso, entendo que os textos que escrevo devem ser lidos, preferencialmente, em silêncio, na hora de dormir ou em frente a uma praia vazia, sem qualquer plateia.

 

 

BM Quem são os escritores que ainda te movem e quais gostarias de deletar da tua formação, se pudesse?

EJ Todos os poetas que li e gostei ou que fizeram parte da minha formação continuo a admirar. Muitos não leio mais porque já li o suficiente e fizeram parte de um período específico da minha vida. A pessoa que sou hoje com 54 anos é muito diferente do jovem que fui aos 19, 20 anos, quando descobri a poesia e comecei a escrever. Se no passado lia de forma recorrente Maiakóvski, Rimbaud, Roberto Piva, Torquato Neto, Ana Cristina César, Leminski, Chacal, Cacaso e Drummond, hoje, me deleito na descoberta de novos nomes do Brasil e do mundo, porque o mercado editorial é imenso. Todo mês novos poetas são traduzidos, publicados e procuro acompanhar aqueles que despertam de alguma forma meu interesse. É uma pesquisa que faço com comprometimento. Portanto, nas horas vagas, tenho sempre a poesia como companhia, mais do que qualquer outra arte. Então, posso citar alguns autores que ocupam meu coração no momento, muitos consagrados e já mortos, outros contemporâneos e até desconhecidos de vários países do planeta, como Alejandra Pizarnik, Nicanor Parra, Al Berto, Manuel de Freitas, Sophia de Mello Breyner Andresen, Giuseppi Ungaretti, Víctor Rodríguez Núñez, Raymond Carver, Mahmud Darwich, Krystina Dabrowska e Kim Ki-Taek, além dos brasileiros Fabiano Calixto, Heitor Ferraz Mello, Michaela Schmaedel, Bruna Mitrano, Felipe Nepomuceno, Daniel Francoy, Ruy Proença e tantos outros. Na verdade, a lista só aumenta e se transforma com o tempo. Leio também poetas maranhenses da atualidade, principalmente os amigos Fernando Abreu, Adriana Gama de Araújo, Félix Alberto Lima, Josoaldo Lima Rêgo, Luís Inácio Costa, Lúcia Santos, Samuel Marinho, Samarone Marinho, Dyl Pires, Celso Borges, entre outros queridos, que são brilhantes e tornam a vida melhor. Mas reafirmo que não guardo qualquer tipo de rejeição aos autores que me marcaram no passado.

 

 

BM Tu acreditas que todo poeta tem o dever de não ser alienado? Ou a poesia também tem o direito de não servir para nada?

EJ Existe uma ambiguidade nesta questão, porque um poeta pode escrever sobre um universo completamente onírico, deslocado da realidade, mas manter uma postura engajada no sentido político. Ademais, só confio em poetas que têm preocupação com o mundo ao redor, que são focados no bem-estar social, coletivo. Do contrário, ignoro.

 

 

BM Já quis largar tudo? Não só a literatura, mas até o desejo de escrever? O que te salvou?

EJ O que tenho ou conquistei é muito precioso para mim. A minha família, os amigos e afetos, o emprego, os meus gatos, os livros. Não penso em abandonar nada. Não faria qualquer sentido. Mas, na juventude, fiz algumas viagens, mesmo breves, que me marcaram muito e significaram de certo modo um abandono, muito mais no sentido de liberdade do que de ruptura. Quanto à poesia, nunca planejei nada em relação à escrita. A expressão se manifesta de maneira natural, basta manter o hábito da leitura. Para mim, o contato com a poesia é o principal alimento para a escrita.

 

 

BM Já quiseste desaparecer como autor? Já pensou em escrever sob pseudônimo, sumir, recomeçar?

EJ Não sou um autor, um poeta, suficientemente famoso, para se dar ao luxo de desaparecer por qualquer motivo. Se fosse parar de escrever seria por uma razão natural, por um processo íntimo, não planejado, que não teria relação com o mundo externo. Um dia pode ser que aconteça, mas não vai ser de forma programada.

 

 

BM Como lidas com a repercussão dos teus livros? Te animam ou te afundam em insegurança?

EJ Não nutro grandes expectativas em relação aos meus livros. A não ser tocar aqueles que frequentam os lançamentos, ou seja, 50 ou 60 pessoas. O nosso raio de alcance é ínfimo. Sobretudo na atualidade, a poesia é um gênero lido e valorizado quase somente por pessoas que escrevem poesia. Então, é uma grande satisfação escrever e publicar livros, mas não me iludo em atingir muitos leitores ou alcançar um reconhecimento abrangente. Há uma entrevista famosa do poeta Ricardo Aleixo, em que ele enfatiza que a maioria dos livros do gênero publicados no Brasil não passa de 200 exemplares a tiragem. Então, a gente pode supor que há 200 leitores de poesia num país de mais de 200 milhões de habitantes. É um número irrelevante.  No entanto, exatamente por isso, a permanência da poesia é um milagre, é um contraponto diante de tanta violência, velocidade, simulacros, superficialidades, desumanidade e excessos do mundo atual. Além disso, a poesia pode atingir um público formador de opinião e, por esse motivo, conquistar alguma notoriedade e, quem sabe, transformar uma vida, uma pequena realidade.

 

 

BM Ser lido te transforma? Ou te empurra para uma caricatura de si mesmo?

EJ É claro que transforma. No mínimo, estimula a gente a continuar. Fico muito feliz quando recebo algum feedback sobre os meus livros, sobre os meus poemas.


 

BM Tem dias que o poema não vem. E tem dias em que ele vem, mas é uma porcaria. O que tu fazes com esses dias?

EJ A falta de inspiração ou a inspiração insatisfatória não me incomodam. Passei muito tempo sem escrever poesia, sem criar, porque a linguagem poética tinha deixado de ser prioridade. Mas o retorno foi natural. Além do mais, sou muito rigoroso com a minha criação. Passo muito tempo lapidando um poema. Nem tudo que escrevo, publico. Aquilo que não gosto reescrevo ou descarto sem nenhum remorso. Se um dia a criação não vier mais, vou me recolher tranquilamente. Entenderei que o ciclo se fechou e que atingi o meu limite criativo. 

 

 

BM Tu te sentes mais poeta ou mais pessoa? Ou já não vê muita diferença entre os dois?

EJ Quando era jovem, na época da Universidade, no comecinho dos anos 1990, eu, Geraldo Iensen, Elício Pacífico, entre outros camaradas, armamos algumas performances e recitais pelo campus da UFMA. Foi uma época divertidíssima.  Teve também o importante contato com as atividades do grupo Poeme-se, integrado por Paulo Melo Souza, Cláudio Terças e Ribamar Filho. Foi um grande aprendizado, além dos laços de amizade que se firmaram. Nesse tempo, o poeta talvez fosse maior ou mais vistoso que a pessoa. Mas hoje em dia, não vejo separação, distinção. Ambos são discretos.

 

 

BM Tua obra é repleta de imagens que flutuam, mas a materialidade aparece, vez ou outra, como ‘sapatos na janela’. Escreves melhor no devaneio ou na concretude?

EJ Como disse antes, tanto a memória, que remete a fatos concretos, quanto os sonhos, que são abstratos, são matérias-primas para o meu exercício poético. Além do mais, posso afirmar que a crueza do mundo concreto me estimula a pensar em um universo onírico, ou seja, tornar um pouco mais leve a densidade por meio da escrita, sem perder o impacto, a surpresa essencial do poema.

 



Comentários

  1. Ótima entrevista! Parabéns Bioque e Eduardo!

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  2. Só um detalhe: não participei das performances do Poeme-se. Participei dos debates e leituras de poesia que o grupo promovia.

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  3. Excelente. Palmas para os fois

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  4. Excelentes os dois. Bravo!

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  5. Excelente entrevista. Parabéns ao entrevistado e ao entrevistador.

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  6. A entrevista conduzida por Bioque Mesito com Eduardo Júlio revela um encontro raro de profundidade e sensibilidade. Eduardo se mostra um poeta de extrema lucidez, alguém que vê a poesia não como espetáculo, mas como uma delicadeza essencial para existir. Sua fala combina maturidade, desapego e um amor genuíno pela palavra, sempre distante de qualquer vaidade. Bioque, com perguntas precisas e inteligentes, consegue abrir espaço para que o poeta se desdobre sem pressa, permitindo que o leitor mergulhe nesse território onde o silêncio e a escrita se entrelaçam. Entre o mundo concreto e o devaneio, o verdadeiro milagre parece ser continuar acreditando na poesia — ainda que para poucos, ainda que em silêncio. Uma leitura que inspira, acolhe e permanece.

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