TRISTE MADRUGADA 

NO MARECHAL CUNHA MACHADO

 

Era madrugada no saguão do aeroporto Marechal Cunha Machado. Já passava da 1h30 da manhã e a espera pelo voo para o Rio de Janeiro parecia um castigo. Sentado em uma poltrona desconfortável, com a cabeça pousada de minha esposa no meu ombro, vi surgir, de terno claro, cabelos imaculados, passo lento, mas seguro, José Sarney. Pensei: “Justo eu, crítico desse cara, tinha que cruzar com ele no embarque?”

Fingi desinteresse, mas os olhos escaparam. Era como assistir a um pedaço da história atravessando o saguão vazio. Enquanto alguns funcionários ainda cochichavam, preferi observar de longe. Levantei-me para comprar uma água. Ele vinha na direção contrária. Parou a poucos metros de mim, Sarney me lançou um sorriso polido e comprou um sorvete.

— Boa noite — disse ele, com a voz rouca que embalou tantos discursos.

— Boa noite — respondi seco, sem o calor habitual dos fãs. Resolvi não dourar a pílula.

Fiquei imaginando a cena, e se perguntasse a ele: “Ainda circulando livremente pelo Maranhão?”, talvez Sarney mantivesse a compostura, como quem já ouviu coisa pior numa tarde de domingo.

Aí, responderia: “Sou filho desta terra, meu senhor”, como se fosse imune às críticas. Aproveitaria o gancho e atiraria essa: “Pois é, mas também é pai de muitos dos problemas que nos assombram até hoje.” Ele com certeza arquearia a sobrancelha direita, aquele movimento lento que resumiria mais de cinquenta anos de poder.

“A história é dura com todos nós”, diria, quase como um padre que confessa pecados alheios.

Falaria da oligarquia, dos anos de domínio, dos conchavos de bastidores. De sua filha Roseana, dos processos, dos escândalos abafados. Ele apenas ouviria, às vezes com um meio sorriso de resignação. Não se defenderia, nem atacaria. Ficaria confortável em ser o espantalho de todas as críticas, ou talvez soubesse que contestar seria inútil às 2h da madrugada.

Comentaria, sem delicadeza, que a poesia dele me parecia uma tentativa desesperada de humanizar o político frio que se eternizou no poder. “Quem muito governa, pouco sente”, arremataria.

Ele soltaria uma risadinha abafada. “O poeta é uma máscara que se adapta”, responderia.

Contaria que meu pai, José de Ribamar Brito, era seu fã incondicional. Defendia Sarney como quem defende uma fé. E eu, questionava tudo desde a adolescência. Papai dizia: “Tu ainda vais ver que Sarney salvou o Maranhão.” E eu retrucava: “Salvou para quem?” Agora, ali na frente do próprio mito, sentiria que papai sorriria zombeteiro.

O saguão cheirava a café requentado e limpeza barata. Sarney, indiferente, parecia confortável entre cadeiras vazias e histórias inacabadas. Falaríamos sobre tempo, poder e o Maranhão, que parecia nunca sair do mesmo lugar.

Eu o indagaria: “O senhor acredita mesmo que fez mais bem do que mal?” Ele pensaria um pouco, olharia para a pista deserta e responderia: “Fiz o que pude. O julgamento não é meu.”

O embarque enfim foi anunciado, e caminhamos juntos até a fila. Algumas pessoas o olhavam, mas ninguém ousava abordá-lo. Era como se estivesse cercado por uma bolha invisível feita de respeito forçado e memória seletiva. Eu era o único ali que parecia disposto a furar essa bolha. E, paradoxalmente, sentia um certo orgulho disso.

Dentro do avião, sentamos em fileiras próximas, ele na frente, eu logo atrás. Vi a cabeça branca e calva balançando levemente enquanto cochilava antes da decolagem. Um homem que foi presidente da República, senador, patrono de tantas gerações políticas, agora era só um passageiro comum tentando atravessar a madrugada.

Enquanto o avião cortava a escuridão rumo ao Rio de Janeiro, pensei nos fantasmas que voavam conosco. Sarney era, sem dúvida, uma dessas figuras que já não pertencem a um só tempo. Entre acertos e erros, havia se transformado em algo maior: um pedaço entranhado no DNA político do Brasil e, principalmente, do Maranhão.

Lembrei de como, em tom de brincadeira amarga, dizemos por aqui que Sarney já enterrou mais gente famosa (alguns nem tanto) que a própria morte: Tancredo Neves, João Paulo II, Franklin Sinatra, Dorothy Stang, Pelé, Madre Teresa de Calcutá, Maradona, Chico Xavier, Simone de Beauvoir, Silvio Santos, Brilhante Ustra, Cid Moreira, meu pai, e até o Papa Francisco. Mas Sarney continua, firme, respirando história e poeira.

No final das contas, entendi que Sarney não é apenas um nome, mas uma instituição viva que desafia o tempo. Como dizemos no Maranhão: “Sarney já enterrou até o tempo.” E naquela madrugada, no fundo do saguão e da história, vi que ele também enterrou a si próprio, mas nunca enterrará minha indiferença com quem assinalou um triste destino de pobreza e destrato ao povo do Maranhão.

 


Bioque Mesito é poeta, autor de cinco livros

 de poemas publicados 

Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Há uma certa calma no seu texto, coincidindo com o seu sentimento do momento. O tempo e suas revelações vem para todos. Uma figura emblemática, parece até que o jargão, "ame-o ou deixe-o" foi criadompara.ele..

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  3. Na juventude, a revolta nos move como febre. Já na maturidade, ao divisar seus cabelos grisalhos, não mais sentimos fúria, mas uma estranha ternura. É como se o tempo tivesse cobrado tudo o que jamais poderíamos dizer. Já não há o que cobrar, apenas o que observar. Aquele pai que enterrou os nossos carrega-os agora em silêncio, nos gestos gastos. O ancião — essa figura que habita os crepúsculos da história — desperta em nós não mais indignação, mas uma espécie de melancolia reverente. Há algo de sagrado e trágico naquele que, tendo vivido demais, parece já ter sido punido pelo próprio tempo.

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  4. Uma crônica permeadada pela ironia e pelo paradoxo de um homem que viveu para se fazer história, seja ela, boa ou ruim. E o autor do texto soube dimensionar isso muito bem, sem cair no banal nem no constrangedor. Escreveu como se deve "escrever' para ser lido por todo mundo, sem objeções ou ransos ideológicos.
    Parabéns!

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