UMA
ESCALADA COM MUITAS PAUSAS
Segurança Pública
O café esfria à minha frente.
Os olhos da mãe na tela da tevê
São tigres na madrugada, e buscam
Os culpados.
Eu fico aflito.
Subo as escadarias da comunidade.
Ao meu lado, quatro cartuchos de bala.
Escuto todos os gritos.
As portas se fecham, as luzes se
apagam.
um muro cai.
O filho, de costas, na rua.
A mãe aos berros:
“A PM não respeita
A farda da escola?”
(Paulo Rodrigues)
Quando
li o livro Cordilheira de Paulo Rodrigues, me deparei com o poema “Segurança
Pública” e fiz uma longa pausa para refletir como esse texto é um retrato dramático
e crítico da violência policial nas periferias do nosso país, sobretudo, quando
se trata da pessoa preta.
Paulo constrói uma cena carregada de tensão e
tragédia, poderia ser um curta metragem de tão visual. No primeiro verso “o
café esfria à minha frente”, a gente já toma um gole de impotência diante da
barbárie. É simplesmente alguém paralisado diante de uma interrupção brusca de
uma vida (pacífica). Mas, ressalto, que provavelmente o eu-lírico que se
paralisa diante da notícia é alguém que se sensibiliza e sofre com essa
realidade, provavelmente, um(a) poeta. Pois, em nosso país só “há enorme
comoção na mídia quando a violência tira a vida de uma pessoa branca” (RIBEIRO,
2019, p. 103-104), não se costuma dá o mesmo valor a vidas negras.
No segundo verso “Os olhos da mãe na tela da tevê”
representam os olhos de todas as outras mães, que vivem entre o desespero e a
fúria. A metáfora do tigre traz este instinto protetor de mãe e ao mesmo tempo
de revolta. Essa mulher pode ser
“aquela
negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida, quem sofre mais
tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente, porque é
ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar
praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos objeto
de perseguição sistemática (esquadrões da morte, “mãos brancas estão aí matando
negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos.
Por outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste
país)” (Gonzales, 1984, 231).
Esse
enxerto de Gonzalez converge com o poema de Paulo, a medida em que ambos, o
trecho e o poema refletem a absurda marginalização das mulheres negras,
sobretudo as que moram nas periferias, destacando a interseção entre racismo,
pobreza e violência. Além de apresentar um caráter denunciativo, pois mostra
que essas mulheres são as principais vítimas do racismo estrutural, não apenas
por estarem à margem da sociedade, mas por assumirem sozinhas o peso de
sustentar suas famílias em meio à perseguição e ao extermínio de seus homens e
jovens pela polícia.
O eu lírico não conformado, se aflige, sobe as
escadarias, depara-se com cartuchos de bala. Essa cena mostra um ambiente de
confronto onde a violência contra a pessoa da comunidade impera. O ápice do
poema, a cena do jovem, provavelmente, baleado e caído na rua, atingido pelas
costas nos remete ao microconto “Uma vida inteira pela frente/O tiro veio por
trás” de Cíntia Moscovich. E “a mãe aos berros” denuncia a falta de segurança,
a falta de respeito até mesmo àqueles que estudam. Não se respeita um
estudante, pelo simples fato de ser da comunidade, de ser negro. De modo que o assassinato de uma pessoa da
periferia e negra é um assunto que, infelizmente
só ganha destaque no debate público, quando um caso muito violento chega
aos noticiários, como o brutal assassinato de Evaldo dos Santos por agentes do
Exército, no Rio de Janeiro. No dia 7 de abril de 2019, o carro em que Evaldo e
sua família estavam foi alvejado por militares. Inicialmente divulgou-se que
foram disparados 83 tiros, mas o total chegou a 257. Na época, muitas pessoas
se manifestaram diante desse absurdo. O que muitas dessas pessoas talvez
ignorem é que esse não foi um caso isolado: ele integra uma política de
segurança pública voltada para a repressão e o extermínio de pessoas negras,
sobretudo homens. (Ribeiro, 2019, p. 95).
Dessa forma, a sequência de imagens no poema constrói uma atmosfera de
pavor e desespero. E “o muro caindo” representa o clima de destruição, terror e
um ciclo de medo e de silêncio. A comunidade se vê impotente diante da
repressão. O poema constitui-se, portanto, “uma
metáfora para as recorrentes e violentas perdas de corpos negros na sociedade
brasileira” (BORGES; MALAQUIAS; MOURA, 2023, p. 6). De modo que a identificação racial e o racismo apresentam-se como
elementos centrais destacando a relevância das questões de desigualdade racial.
Nesse poema, temos o abismo social entre aquele(a) que
sofre na pele e na alma a violência da “segurança pública” e quem assiste a
essa realidade na TV, como a um espetáculo, nem sempre se comovendo. Esse poema
é curto, mas extremamente impactante. E traz temáticas muito importantes que
devem ser discutidas nas escolas e em diversos outros ambientes, inclusive nas
rodas de conversas – a violência policial, a luta das mães por justiça, o
abandono do Estado.
E a pergunta final da mãe ecoa como um grito de
revolta e aflição, sintetizando a denúncia feita no poema: nem a inocência,
nem a juventude, nem o uniforme escolar impedem que vidas sejam ceifadas pela
brutalidade policial, pelo racismo. Esse poema curta-metragem “é uma história que se passa na
penumbra, e é preciso que o sol transumante que [trazemos conosco] clareie os
mínimos recantos” (Fanon, 2008, p. 43), nos fazendo refletir sobre essa
realidade e nos posicionar diante das injustiças sociais.
O
livro Cordilheira me impactou, sobretudo, por seu caráter denunciativo, mas não
só, também pela construção poética e imagética. Na verdade, os poemas são
curtas metragens, cenas doloridas, dolorosas e reflexivas. O título faz jus ao
livro, a medida em que lê-lo é escalar uma grande montanha, fazendo muitas
pausas.
REFERÊNCIAS
BORGES, Jaqueline; MALAQUIAS, Yasmin;
MOURA, Christian. As violências que atravessam o corpo negro feminino: uma
análise da poesia de Lubi Prates. Revista do GELNE, v. 25, n. 2, 2023.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras
brancas. Tradução de Renato da Silva. Salvador: Edufba, 2008.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na
cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p.
223-244, 1984.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual
antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Anna Liz é poeta, escritora,
mestranda em Língua Portuguesa/Unifesspa
O poema é grande, mas a sua análise O deixou mais rico e revelado em toda sua essência. Parabéns, Anna!
ResponderExcluirDenúncias fortes, mas que cumprem o seu papel.com.a leveza que só a poesia pode dar. Poema.e considerações sobre o tema irrerotocaáveis. Parabéns aos dois queridos: Paulo Rodrigues e a Annaliz. Aplausos! Dilercy
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAnálise clarividente que rebusca das entranhas do poema sua conexão com a exterioridade, com as imbricações sociais que, inadvertidamente, o olhar do "não poeta" normaliza na rudeza do quotidiano. Essa análise perfeita, ressalta no poema, as cores trágicas da colonialidade do poder... Ana amplifica a voz decolonial do poeta. Ainda bem que temos Ana e Paulo Rodrigues. (altemarlimaescritor@gmail.com
ResponderExcluirO poema já é grande e com essa análise… sem palavras para descrever as emoções que essa leitura nos traz. Anna, você é grandiosa!!! Obrigada por nos permitir tamanha reflexão! marlysouzamarreiros@gmail.com
ResponderExcluirO texto de Anna Liz é um convite para a leitura da obra do nosso querido escritor Paulo Rodrigues, um representante dos mais ousados da Literatura Maranhense contemporânea no combate e denúncia contra o racismo. Que lucidez de texto, Anna! Muito bem escrito. Nas verdade, ambos os escritores merecem nossa admiração e nosso respeito. Palmas!
ResponderExcluirNa análise, Anna Liz evidencia a intensidade do poema de Paulo Rodrigues, destacando sua expressiva crítica às práticas excludentes e à desigualdade social enfrentada pelas comunidades marginalizadas. Ela observa como o autor constrói imagens contundentes que revelam a exclusão vivida por grupos periféricos. A leitura se transforma em um trajeto de impacto e reflexão, exigindo pausas diante da dureza da realidade exposta.
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