AS DAMAS NEGRAS EM NOITE DE NÚPCIAS

 

1

talvez um poema seja

simples sobra de palavras

impronunciadas por pessoas

na inútil Babel da fala

mas impressas como em tábuas

da sarça do Verbo em chamas

nessa partida de Damas

Negras em Noite de Núpcias

que num lance de dados e de dedos

o acaso não abolirá

 

2

talvez um poema seja

simples poeira de palavras

projetadas de pessoas

imprimidas como trevas

bem no coração da névoa

que acaso num lance de dedos e dados

como silhuetas que se projetam

como penumbra esfumada

que o acaso não abolirá

 

3

talvez um poema seja

simples sombras de pessoas

transformadas em palavras

silhuetas tatuagendadas

por invisíveis carimbos

que explodem na claridade

a pista de rastros e restos

de cacos caos e resíduos

do simulacro das lágrimas

mumificadas em larvas

de adeuses e últimos gestos

salvo após o rescaldo

em caligramas e símbolos

que de súbito num lance de dedos e de dados

o acaso não abolirá

 

4

talvez um poema seja

simples escombros de palavras

projetadas de pessoas

balbuciados pedaços

de silêncios e silícios

de gritos amordaçados

silenciosos ideogramas

gritos dos olhos dos mudos

barulho de dedos dos surdos

o supertato dos cegos

na visão dos surdomudos

aprisionados em páginas

imagens anônimas das almas

mensagens psicografadas

na comunhão dos sentidos

que num lance de dados e de dedos

o acaso não abolirá

 

5

talvez um poema seja

simples sobra de palavras

projeção de suas sombras

ou o espectro de suas auras

que da escassez ou da falta

ingressam na noite e tombam

no elíptico canto deságuam

no despenhadeiro da ascensão

que por um lance de dados e de dedos

o acaso não abolirá

 

6

talvez um poema seja

simples sobras de palavras

impronunciadas por pessoas

projetadas como sombras

tatuagendadas na pele

tangenciadas na neve

com impressões digitais

silhuetas que despreendem

oscilam dos corpos e tombam

num lance de dados e dedos

que o acaso não abolirá

 

7

talvez um poema seja

simples sobras de pessoas

encantadas em palavras

projetadas como sombras

tatuagendadas incisões

como impressões digitais

de cicatrizes em ronda

que se despreendem da pele

oscilam dos corpos e tombam

num lance de dedos e dados

que o acaso não apagará

 

8

talvez um poema seja

somente sombras de palavras

pó que despreende dos corpos

como poeira de estrelas

que viola a gravidade

do Cosmo e telescópios

e foge de apelos celestes

viaja a mil anos-luz

e à noite poleniza as folhas

em suas densas corolas

e no coração das trevas

inscreve-se em simples larva

e deixa aí manuscrito

todo o poema da Terra

que nos charcos enfim enfloresce

como num lance de dedos e de dados

que o acaso não abolirá

 

9

talvez um poema assim

seja simples

como sombras de palavras

simples silhuetas ímpares

de simples pessoas pares

anônimo canto dos párias

que no caminho meio desta vida

entre lances de dedos e de dados

como as Damas súbitas da partida

o acaso não abolirá

 

talvez o poema assim seja

 

 

O CANTO

 

 

a morte chega e diz: stop!

e o canto avança no seu galope.

 

o corpo tomba. O invólucro não soma

é o canto em ascese da sua própria soma.

 

que a morte é sempre pretérita ao canto,

quando ela gera seu assédio e espanto.

 

de Edgar Allan Poe, Villon ou Pope

a morte é antes, que o canto é izope

e salta adiante no seu galope.

 

 

SIMULACRO



Em quanto cada um e mais

que a representação?

Ou o ser só encontra paz

na ficção?



Sou quem me inventei.

O real não existo.

Coroai-me rei, serei rei

como todos, protagonista.



A realidade deixamos

nos bastidores como lixo.

Após o último ato, no entanto,

o morto é o próprio artista.

 



Alberico Carneiro é poeta, escritor e 

Editor do Suplemento Literário Guesa Errante 

Comentários

  1. Francisco Moreira Filho.quinta-feira, 15 maio, 2025

    Parabéns pelos excelentes poemas do excelso poeta Alberico Carneiro.

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  2. Excelentes poemas. Alberico é um poeta da estirpe dos que, em silêncio e em solidão, trabalham o verbo em camadas de significações e amplitudes que só os verdadeiros portas conseguem atingir, para além de suas meras translações do real. Um poeta que o tempo, como faz com os bons vinhos, maturou e elevou a grandezas e cumes magníficos.

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