CARTA (À) MARGEM

 

 

Poema que surge inexato

não sabes o quanto espero

emergires do poço fundo

após derretidas buscas.

 

Claro enigma em folha de relva

descreve agora meu delírium tremens

nesta tarde naureana sem Nauro

na estranheza da ponderação do silêncio.

 

Salvai-me, poema, do antigo desencontro:

limão nos olhos, farpa nos dedos

cidade desaparecida, silenciando

como os Canhões de Chagas.

 

Nebulosa batalha em impiedosa arena

Alvura desenhando meus cacos

pondo-os como paralelepípedos

para transeuntes passarem

com seus objetos indiretos

na Grande Rua de encolhidos homens.

 

Sombra caída do Caiçara na calçada

Límpido Poema Sujo correndo como um rio

dentro da noite veloz, lentamente em mim,

Relato do Escambau no Umbigo do Mudo

eis o Exercício do Caos na persona non grata.

 

Salvai-me poema, da morte do boi

na liberdade ou em sevilha

nos arraiais ou em câmaras frias.

 

Não fujo do Jogo das Serpentes

Corro no Círculo das Pálpebras

numa Compulsão Agridoce

destemido e sem lamentos

Sou fingidor e navego no im-preciso

O Mural que leio é o dos Ventos.

 

Livrai-me poema, da morte plena

ainda que eu ande só Pele e Osso

que testemunhe o Crime na Flora

ou que me sirvam só “carne de pescoço”.

 

 

ESCAMAS DO TEMPO

 

                                                    Para São Luís

 

I

Há mais de quatro séculos percorro ruas e becos desta ilha

e a vejo hoje como há muito abrigando ecos de antigas vozes

das sacadas absorvo sussurros de taças de cristal e cheiro de

tinta de jornal invade-me as narinas em outro momento escorre

café forte fugindo de um vitral quebrado de outro quarteirão o som

de um piano revela algum iniciante mais ali um bem-te-vi

a me assistir deixando emprestado um amarelo a outras cores que capto

de azulejos que reelaboram minha imagem na tarde em imponente paredão

na majestosa Rua Portugal onde confiro e meço risonhos paralelepípedos.

 


II

de um lado mais alto aprecio escamas de barro amarronzando o teto

num quase vermelho rabiscado por um verde limo fino carpete abrigando

borboletas e libélulas até minhas lentes não darem mais conta de outros voos

vou me valendo de tristes olhos que me fitam como a me pedir socorro

janelas de um casarão meio torto curvando-se qual papelão quando se molha

perdendo celulose e dobraduras e tonalidade em silenciosa súplica.

 

 

III

deuses desdenhados ultrajados pela frialdade que lhes amolece até pedras

de cantaria desconsiderando mais quatro séculos de azulejo & poesia

folhas abertas nos mirantes de onde alguém fita a travessia do Maria Celesle

notas de Catulo na praça trazem uma mais que antiga Paixão

muito mais que poema panteon cio delírio metamorfose e maresia

onde putas perdidas já não encontram na 28 antiga comunhão.

 


IV

Arco do tempo de Laura traduzindo quiromancias

Jerônimo não viu o choro da carranca na fonte do Ribeirão

pequeno grande Bogea catando chumbo mosaicando o dia

não provou do sal da poesia Salgado poema do Maranhão

nem La Touche assistiu na Afonso pena à velha em sua litania.

 

 

CONCERTO NA SILVA JARDIM

 

                                                         Para Francisco Tribuzi

 

Ainda vi o piano que Bandeira dedilhava

e sobre sua mesa as últimas cinzas

do último cigarro que ele tragou

o instrumento foi tombado por Maria

guardando as notas mais profundas

que da alma do poeta eclodia.

 

 

GALOPES AO ENTARDECER

 

Penélope sabe que há muito

 vem na garupa comigo

 no mesmo cavalo de Ulisses.

 Cavalgamos por trilhas errantes

nos galopes de silêncio e suspiros

e tanto ela quanto eu sofremos por isso

porque vivemos só pela sintonia

e Platão é padrinho desse precipício.

 


CÂMERA UM

 

Saga em mutirão no quintal de casa

formigueiro fervendo em terra removida

como se eu visse homens na Serra Pelada.

 

Em vão tento conferir operários

eles não se incomodam comigo e têm pressa.

Guardar suas quentinhas para o próximo inverno

é uma missão quase suicida na frente de um humano.

Rápido um corredor cor de gasolina se avexa

ziguezagueando os minutos de um relógio que desconheço.

Transeuntes com verdes torços vão tecendo a aba da manhã

e eu desisto de pôr o pé sobre aquela vermelha torre.

Eles não estão inscritos no programa Auxílio Brasil

O IBGE os desconhece e o Fantástico não sabe o que perde.

Tudo está formado e me torno cúmplice

do xadrez nas folhas do pequeno abacateiro.

 

 

ADAGIANDO

 

Entre o incrível

e o impossível

para morrer

basta está vivo

 

 

REVOADA

 

Mais vale dois pássaros voando

que um na mão.

 

 

SEM REVANCHE

 

Que um dia seja da caça

e o outro também.

 


AZAR DO ASAR

 

Pássaro cantador

paga preço alto

por silvar no esplendor.

 

 

ENSINAMENTO DA PEDRA

 

Quem nunca cometeu nenhum erro

que agradeça ao exemplo da pedra.

 

                                           

César William é poeta, professor, membro

da Academia de Letras de Paço do Lumiar


Comentários

  1. Belos poemas. Gostei demais dos interstícios e bricoleurs que o poeta instila e destila nos seus versos. As referências e recortes intersemióticos trazem deliciosas (mas também doridas) evocações de cheiros, vislumbres, multitudes vocabulares que dão amplidão e figurações a seus poemas. Ótima descoberta da nossa sempre pujante e surpreendente Poesia maranhense.

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