ENQUANTO FAÇO AS MALAS

 

Como disse Camões, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades....”. E em meio às mudanças corriqueiras da vida, encontro-me no dilema descontente de encaixotar meus livros ou separá-los de mim. A biblioteca que herdei de meu pai, mantive-a intacta durante os 35 anos de sua ausência, quiçá, aguardando que ele retornasse para eu devolvê-la ao dono do mesmo jeito que ele a deixara, ou melhor, devolvê-la com mais livros e novos autores, muitos dos quais ele não teve a oportunidade de conhecer. E enquanto eu o esperava chegar pela casa adentro, passaram-se traças, cupins, novos livros... E até eu passei sem me dar por isso. Agora nas tendências minimalistas a que a vida me condiciona nos 60+, descubro que já não caibo na casa. Na verdade, a casa é que não cabe em mim: fiquei pequena para suportá-la. Mas já não preciso de grandes espaços pra ostentar vaidades; preciso de tempo para aproveitar a simplicidade das coisas, dentro da profundidade do mínimo.

Se preciso de um espaço, certamente é aquele que me sirva de concha, afeito à ressurreição. Olho a biblioteca; vejo-a como a concha perfeita para passar os fins de meus dias. Assim, no caminhão de mudanças, os livros têm prioridade. Mas tenho que fazer escolhas ao adentrar o meu “apertamento”.  Coloco-me, pois, em meio às enciclopédias e livros, principalmente os sentimentais, a exemplo de duas coleções completas de Humberto de Campos: uma de meu pai; outra - de edição mais antiga - que me fora doada por meu tio Waldemar Paiva, esposo de minha tia e madrinha Marilene Rosa da Cunha Paiva, uns meses antes de ele falecer.  

E então começo a selecionar o que vai comigo e o que doarei para fazer outras pessoas felizes. E é o próprio Humberto de Campos quem vai me ajudar a validar tudo de que preciso nesta minha nova vida de idosa submetida às necessárias tendências minimalistas contemporâneas às quais me rendo diante da vida mínima de que me visto. E enquanto fico a admirar as obras doadas pelos meus mortos, os textos de Humberto de Campos caem como uma luva...

Retorno a degustar as velhas leituras. No seu livro “Sepultando os meus mortos”, com a matéria-prima da saudade, Humberto de Campos homenageia aqueles os quais ele ressuscita por meio da memória. Com a égide do brilhantismo de suas palavras e do seu reconhecimento, foi o coveiro sentimental que abriu as mais nítidas e deliciosas lembranças do João Ribeiro, do Graça Aranha e, entre outros, do magnífico prosador Coelho Neto, com quem convivera e aprendera as lições, enumerando as qualidades do mestre e do material humano que ele o foi. Ao escrever sobre Coelho Neto, Humberto de Campos materializa o luto que se instalou em sua alma, ao dizer-lhe:

 

“-Henrique Coelho Neto?

Escuto a voz que me sobe do coração:

- Presente!”

 

Nosso conterrâneo de Miritiba não usou a pena para fazer de seus artigos uma flâmula de esnobismo literário. Tudo que redigia era envolto na cultura que povoava o seu espírito de imortal; e, equilibrado a ela, um talento criativo, buscado com espontaneidade no âmago de seus sentimentos humanísticos.

Em Os Párias, fez um trabalho substancialmente social e político, deixando, em Uma voz na sombra, o excelente “escultor de palavras”, de uma linguagem literária aprimorada e simples, com o argumento de suas convicções de brasileiro engajado e preocupado com as causas do seu povo, depositando no proletariado aquele que “vendia o miolo da cabeça para comprar o miolo do pão”.

Também, não poderia fugir de minha lembrança O Monstro, entre outros contos de Humberto de Campos. Inspirado na Gênesis, ele reescreve a origem do mundo. Contudo, transforma a Dor e a Morte nos criadores do homem, a dizer que o “monstro” fora feito da água da Dor e do barro da Morte. Depois, Dor e Morte esquecem o momento da coautoria, embevecidas diante da obra. E brigam pela posse exclusiva do ser criado. E, como não chegam a um consenso, resolvem repartir a criação: a Dor retirou do ser toda a água que lhe havia dado; a Morte, posteriormente, diante do monte de lama, carregou sua parte...

Em Memórias, Humberto de Campos demonstra como é melancólico O brinquedo roubado que coloca o menino órfão diante do único brinquedo bonito que possuíra, mas como ele bem o dissera: “Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentosa. Festa de alma que se tornou agonia.” E quando se pensa concluída a lembrança amarga daquele menino órfão, eis que ele, o adulto Humberto de Campos, utilizando a conhecida metáfora, (pedra preciosa de estilo que só brilha nas mãos dos escritores geniais), embrenhada no paradoxo da sentimentalidade, presenteia o leitor com o mais tristonho conceito da felicidade: “E o que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadoramente no coração, e que, no entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele”.

A prosa de Humberto de Campos é integralmente poesia. Ele que também foi grande poeta fora da prosa, como bem demonstram os versos de “Nirvana”: “Viver assim: sem ciúme, sem saudades,/Sem amor, sem anseios, sem carinhos,/Livre de angústias e felicidades,/Deixando pelo chão rosas e espinhos;//Poder viver em todas as cidades;/Poder andar por todos os caminhos;/Indiferente ao bem e às falsidades,/Confundindo chacais e passarinhos;/Passear pela terra, e achar tristonho/Tudo que em torno se vê, nela espalhado;/A vida olhar como através de um sonho;/Chegar onde eu cheguei, subir à altura/Onde agora me encontro - é ter chegado/Aos extremos da Paz e da Ventura!”.

E assim, enquanto busco o meu nirvana entre os livros, vou arrumando minhas malas para uma nova história de vida.



Wanda Cunha é poeta e presidente

da Academia Maranhense de Trovas

Comentários

  1. Quem tem acompanhado os textos de Wanda Cunha nesta coluna deve ter percebido a versatilidade dela em lidar com o texto literario. A cada semana, uma boa surpresa. Ela é sensacional. Quem nunca viu falar em Humberto de Campos, agora tem um bom motivo pra ler sua obra. Wanessa Viana

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  2. Vanda Cunha tem uma maneira própria de narrar, prender e
    surpreender o leitor pelo fio da meada. O conteúdo de seu texto detém a prodigalidade que nos estimula a exercitar a memória.

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  3. Impossível não reconhecer o talento, versatilidade e reverenciar Wanda Cunha, por tudo que ela faz e representa para a literatura e a arte por todos os lugares.
    Honra-me sua amizade.

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  4. Quando se descobre o que realmente é importante prioriza-se essas valiosas companhias, a sua própria, e a dos livros. Viva o mínimo grande.

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  5. Muito bom texto, Wanda.

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  6. "E assim, enquanto busco o meu nirvana entre os livros, vou arrumando minhas malas para uma nova história de vida." Lindo. Parabéns aos grandes escritores

    Dilercy Adler

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  7. Ajuste: . "E assim, enquanto busco o meu nirvana entre os livros, vou arrumando minhas malas para uma nova história de vida." Lindo! Abraços aos dois grandes escritores.

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  8. Nos encontramos na crônica de Wanda Cunha. É um deleite lê-la.

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  9. Que alegria poder viajar nas asas de um texto que nos convida a refletir sobre o desapego e a saudade antecipada de deixar companheiros fiéis, sempre prontos a compartilhar conhecimentos em suas páginas de sabedoria. O sentimento que a querida Wanda expressa em sua mudança rumo a uma nova etapa minimalista nos faz pensar na dificuldade que temos de exercer o livre-arbítrio diante de escolhas que envolvem nossos sentimentos alimentados pelas lembranças carinhosas dos entes queridos. Mas, para tanto, recorre ao auxílio de um expoente maior da literatura brasileira, nosso conterrâneo Humberto de Campos, que, evocado pela querida escritora, surge com suas obras e memórias, despertando em nós o desejo de conhecê-lo profundamente.
    Admirável texto nascido de uma alma que ama viver a literatura em verso e prosa.
    Zequinha Trovador.

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Que reflexão! Embora o novo seja convidativo, é necessário, às vezes, adentrar às memórias. Que belíssimo texto!
    Como sempre, uma mente brilhante guiando as palavras certas.

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  12. Um excelente texto, com a qualidade característica dessa amiga querida da AMT. Parabéns Wanda. ❤️

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