O MENINO QUE SONHAVA
Por que ler Gilmar? Parodiando Celso Gutfreind em sua apresentação
de Jonathan Swift (autor de As viagens de Gulliver) na coleção "Guia de
Leitura 100 autores que você precisa ler" organizada e editada por Lea
Masina (L & PM Pocket, Porto Alegre, 2007), diríamos que há necessidade de
ler com atenção redobrada "O Menino que sonhava" (com chamativas
ilustrações de Hannah Garcês - onde se destaca com a fluidez de um autêntico
criador de estórias (ou quem sabe histórias?) interessantes e pitorescas de sua
terra natal - Penalva (MA) e desta abençoada Baixada Maranhense também
decantada nos versos musicais do falecido Cabeh que tivemos a chance de ouvir
ao vivo no Clube Militar da Litorânea.
Se George Orwell alcança a primazia em seu "Revolução dos
Bichos", satirizando os descaminhos do movimento de libertação dos
operários russos, comparando-a ao "arremedo grotesco da sociedade
humana", Gilmar se aproxima de Swift com as narrações que "junta a um
só tempo adultos e crianças" nos capítulos "As Aventuras do pequeno
roedor", "A Lenda do cavalo morto", "O Cão e seu melhor
amigo". "As Aventuras das crianças", "A Prima que nunca
chegou", "As Pipas de Roberto", "As Arapucas de
Juvêncio", "O Menino que sonhava" (que dá nome à obra) e o
comovente "A Morte dos gêmeos" cuja recomendação é que sejam lidos de
um só fôlego.
Se o maior prêmio de um escritor é ser lido pelos seus patrícios, a
presente obra do autor é de leveza e delicadeza no tratamento de contos
infantis que nos fazem descer à infância, atraem crianças e adolescentes ao
cenário imaginário do que existe de mais fiel nas mais espontâneas e escondidas
aventuras e travessuras do mundo maravilhoso apreciado por leitores de todas as
idades.
Não sobram dúvidas de que Gilmar se inscreve com esta obra na
galeria das bibliotecas de admirados autores brasileiros que trabalham os temas
infantis na arte das letras, como Monteiro Lobato, Maria Clara Machado e
Nascimento Morais Filho (Azulejos).
Quem de nós já não passou por situações tão bem escritas por Gilmar
neste livro, em lembrar a infância ("tempos que não voltam mais" -
Casemiro de Abreu) que são revividos no amor aos animais, às árvores, aos rios
e à vida, enfim, à natureza, sinal superior de todas as liberdades humanas.
Quem não teve uma "arapuca" só sua para apanhar pássaros como
Juvêncio; Eu, pelo menos, no povoado de Genipaúba, no município de Guimarães,
tive essa experiência fantástica relatada por Gilmar. Um mundo raro de beleza e
extrema capacidade criadora, produzida a partir de acontecimentos simples, mas
bastante curiosos e empolgantes. Creio que Gilmar chega com
"O menino que sonhava" à fase mais arrebatadora e madura
de sua criação na literatura infantil. Com a perspicácia encontrada em Swift e
nos irmãos Grimm (Jacob, Wilhelm e Hans, alemães), superando os preconceitos de
proximidade com os humildes (... O seu pai, como a maioria dos moradores
daquele povoado, era pescador e lavrador), as comunidades rurais sofridas, mas
possuidoras de dotes de grandes talentos e fibra de sobrevivência que tanto
conhece e abraça pessoalmente em Jacaré (Penalva, MA), seu lugar-berço. Não
podíamos esperar mais do que o melhor da imaginação infantil nestes contos de
Gilmar. Eles servem de deleite para os que gostam da boa e saudável invenção
dos tipos revelados pela capacidade criadora do autor desta estimuladora obra
literária, com acontecimentos e enredos imprevisíveis e fustigantes. Como nos
confessou candidamente o autor "A ficção e a realidade se misturam nos
sonhos, desejos e nas brincadeiras infantis. A amizade entre as crianças e os
animais, é outro ponto importante do livro. Nas diversas brincadeiras, os
personagens infantis buscam o sentido pela vida. Sonham na esperança de viver
num mundo de fantasia e aventura". A essas observações inteiramente
procedentes, podem ser acrescidas às características impregnadas da descrição
das paisagens de lagos, de rios, das ilhas de água doce, bem como as festas, as
manifestações folclóricas e populares daquelas paragens na região maranhense
dos lagos, que abrange os municípios de Cajari, Viana, Penalva, Conceição do
Lago Açu e Matinha.
De outro ângulo, em "A Lenda do cavalo morto", Gilmar
consegue com maestria colocar o comportamento emocional da amizade do menino
João, com o cavalo Trovão Negro, traçando o perfil psicológico raro no encontro
de um ser racional com um irracional, que transcende a própria morte física e
avança para o espiritual.
As peripécias narradas no conto "O cão e seu melhor
amigo" onde a inflexão de toda uma amizade entre o garoto e o cão fiel que
o salva em perigosas aventuras por ambos vivenciadas, alcança clímax
extasiante. E, em "As Aventuras das crianças" Gilmar explora o
natural e o sobrenatural com efeito pirotécnico, onde é difícil separar uma
coisa da outra, numa formidável simbiose de criação artístico-literária, com
resultados surpreendentes do ponto de vista criativo e ficcional. Não menos
surpreendente é: "A Prima que nunca chegou", cujo mistério e a dúvida
da chegada paralelamente à descoberta de uma caverna, cavar um poço tornam
intrigantes a descoberta e a persistência da espera da parenta. "As Pipas
de Roberto" é uma narrativa cheia de encantos e beleza quase
cinematográfica que parece até com "A Volta ao mundo em 80 dias" e o
que mais torna cativante é o trecho final quando o autor escreve "... Na
imensidão do céu, os meninos viajavam para mundos nunca vistos numa velocidade
espantosa".
Visitaram países inimaginados e paisagens deslumbrantes. Conheceram
pessoas dos países mais distantes, puderam ver animais selvagens como os leões,
elefantes, girafas e dromedários que vivem no continente africano. Visitaram as
geleiras do Ártico e ficaram fascinadas pelos leões marinhos, focas e com
centenas de aves, como o flamingo e os pinguins. Visitaram a Muralha da China,
a Cordilheira dos Andes, a neve nos Alpes Suíços e o deserto do Saara;
visitaram as reservas indígenas dos Estados Unidos e os países árabes. Ficaram
encantadas com as pirâmides do Egito e com os monumentos históricos; visitaram
a Mata Atlântica, pantanal mato-grossense, a floresta amazônica, as Cataratas
da Foz do Iguaçu, os Lençóis Maranhenses, a cidade histórica de Alcântara, os
prédios antigos de São Luís, as cachoeiras de Carolina, as ilhas flutuantes no
lago Formoso, os campos verdes e alagados da baixada maranhense. A viagem
parecia não ter fim e aquelas crianças eram as mais felizes do mundo, pois tudo
não fora mais que um sonho interminável... "O menino que sonhava" vai
em uma rota de grande criatividade do tema ao apontar a estória de meninos que
não podiam acordar, sob pena de perder o encanto e se tornarem adultos.
Finalmente, como o já comentado "As Arapucas do Juvêncio", que
fabrica uma arapuca gigante e se transforma em uma árvore de natal. Depois se
desilude com suas criações, pondo fogo em todas elas. Isso significava que
todos os cativos devem ser libertados e rompidas as grades das cadeias. É nesse
simbolismo que encerra, magistralmente com "A morte dos gêmeos" cuja
parte se assemelha a uma elegia a todas as crianças que não tiveram a
oportunidade de nascer em um lugar cuja maldição só termina ". ...quando uma
das famílias tiverem gêmeos parecidos com os que morreram
misteriosamente".
".... Ao estilo Edgar Alan Poe, Gilmar Pereira Santos consegue
dar à sua obra uma fenomenal atmosfera de realidade, e ao mesmo tempo, de
mistérios, descobertas, críticas veladas e dúvidas, não se esquecendo de
pontilhar a escuridão em que vivem seus concidadãos (...Como não havia energia
elétrica no povoado, usou gás natural (lampião) para iluminar a árvore no
período noturno) de onde retirou as lendas das estórias que conta com vigor e o
carinho de um escritor com larga visão do destino da literatura regional e
universal. É um livro para ser lido e relido sempre, pois, carrega a missão de
escritor cumprida a contento dos mais exigentes gostos.
Josemar Pinheiro é jornalista, advogado e ex-professor
da UFMA dos cursos de Comunicação Social e Direito
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