URBANA LEGIO OMNIA VINCIT

 

O tempo passa. E, às vezes, deixa trilhas. Em 1989, a Legião Urbana fez isso: lançou um disco que mais parecia uma conversa com o mundo e com o próprio abismo. As Quatro Estações não foi um simples álbum, foi um diário existencial. Nesta época agradava as meninas do Centro de Educação Tecnológica - CEFET, levando meu Long Play para a quadra, onde ouvíamos dezenas de vezes. A gente ouvia e sentia que Renato Russo escreveu com dor e esperança ao mesmo tempo. Esse disco é como um abraço apertado em quem nunca mais vimos. Músicas como essas nunca envelhecerão.

O álbum começa com “Há tempos”, uma provocação filosófica. O som é denso, a letra é um quebra-cabeça entre livro, filme e vida. Dá aquele estranhamento de quem cresceu demais por dentro, como se a adolescência tivesse ficado para trás sem avisar. E a gente ouve e pensa: será que amadurecer é sempre tão dolorido? Talvez a música só tenha traduzido aquilo que muitos sentem, mas poucos têm coragem de dizer. E isso já é um ato poético.

A gente aprende a viver com as perdas. E “Pais e Filhos” vem como um espelho trincado, refletindo nossas fraturas. Renato Russo grita, sussurra, aconselha, acusa e perdoa em uma só canção. Amar como se não houvesse amanhã pode soar piegas, até você perder alguém. A música é um sermão moderno sobre ausência e afeto. E, cá entre nós, todo mundo já chorou ouvindo essa.

É curioso como a dor nos une. Quando uma banda fala de suicídio, como Renato fez, ela não está incentivando a morte, mas lutando pela vida. Há algo de muito humano em transformar o desespero em canção. A arte, nesse ponto, é quase terapêutica. O refrão de “Pais e Filhos” nos convida a um abraço coletivo. E amar se torna um ato de resistência, uma forma de continuar.

“Feedback song for a dying friend” é quase um adeus em inglês. Escrita antes, virou homenagem para Cazuza. A música é crua, sincera, sem rodeios. Fala da fragilidade que todos tentamos esconder. Porque, no fundo, todos temos medo da finitude. Mas a canção nos lembra: viver é saber que um dia se vai, e mesmo assim continuar cantando.

E então o sol entra pela janela, como em “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. E a gente respira fundo. Essa música é o respiro do disco, é aquela fresta de esperança que ninguém espera. Ela diz que o mundo pode melhorar, mesmo quando tudo parece perdido. É uma oração em forma de verso. Uma dessas canções que a gente ouve no fim da tarde e acha que o mundo ainda tem jeito.

Renato brincava com referências como quem escreve cartas ao universo. “Eu era um lobisomem juvenil” é título de filme antigo, mas na música é metáfora viva. Fala de transformação, adolescência, do bicho que existe dentro da gente. É sobre crescer sem perder a fúria. E quando o arranjo cresce junto, a gente entende: essa banda não queria mais apenas fazer música. Queria dizer algo maior. E disse. 

Em “1965 (Duas Tribos)”, o grito é político, é histórico, é necessário. A canção resgata o passado recente e aponta dedos para um futuro que parece não aprender com os erros. A ditadura não é só lembrança, é ferida aberta. A música é uma aula de história com guitarras e bateria. E ouvir isso é lembrar que música também é ato político.

Se toda estação tem um ciclo, essa faixa é o inverno: gelada, dura, verdadeira. E logo depois, o amor se apresenta em forma de sutileza em “Monte Castelo”. É Bíblia. É Camões. É amor como conceito metafísico. Renato uniu o sagrado e o profano numa só melodia. Amar, segundo ele, é resistir — mesmo que doa. É poesia que arrepia a espinha.

Monte Castelo é uma catedral construída com palavras. A letra tem tanto peso que não cabe só na fé. Cabe também na filosofia, na literatura, na existência. Quem já amou sabe que “sem amor, eu nada seria” não é exagero. É constatação. E é bonito ver como a música pode transformar um conceito teológico em experiência humana. Quase sagrada.

A leveza volta com “Maurício”. Parece simples, mas é uma das canções mais pessoais de Renato. Fala de amor com doçura e desapego. É um recado íntimo, desses que a gente escreve, mas não manda. Há uma delicadeza quase infantil ali, um gesto de ternura. Talvez seja isso: às vezes, amar é apenas deixar ir. E cantar com um sorriso de canto de boca.

E aí vem “Meninos e Meninas”, como quem abre uma janela num quarto abafado. A canção fala da liberdade de ser quem se é. E isso, em 1989, era quase revolucionário. Renato diz com naturalidade que ama homens e mulheres. E o mundo ouve, ora chocado, ora fascinado. É uma aula de coragem. E cada verso é um manifesto contra o preconceito.

Essa música não é só sobre sexualidade, é sobre identidade. Sobre olhar no espelho e gostar do reflexo. É sobre viver sem pedir desculpas por ser o que se é. Renato estava anos à frente do tempo. E ouvindo hoje, a gente entende que liberdade sempre será um dos maiores luxos da existência. Um luxo que a música nos dá de presente.


                                 As quatro estações foi lançado em 25 de outubro de 1989 

“Sete Cidades” é quase uma viagem interna. A letra fala de perdas, memórias, do que ficou pra trás. E a gente entende que algumas dores não têm cura, só têm melodia. É sobre ausências que ecoam. Sobre a tentativa de seguir em frente com a bagagem da saudade. E talvez, por isso, ela toque tão fundo. Porque somos feitos das cidades que deixamos para trás.

A canção final, “Se fiquei esperando meu amor passar”, fecha o disco com oração. E é bonito ver isso: um álbum que começa com um estranhamento e termina com um pedido de paz. A oração do Cordeiro de Deus é como um antídoto para todas as dores ditas antes. É o ponto final que pede perdão, que se despede com ternura. E a gente sai diferente de quem entrou.

Porque música boa faz isso. Ela entra pela porta dos ouvidos e bagunça a sala da alma. As Quatro Estações não é um disco qualquer: é uma obra sobre o humano. Sobre sentir demais, pensar demais, viver apesar de tudo. É quase um tratado filosófico disfarçado de álbum de rock. Um convite para olhar para dentro. E nem todo mundo tem coragem de aceitar.

Cazuza foi bom, mas o maior poeta da música pop rock do Brasil foi sem dúvida Renato Russo.   Era cronista de uma geração, filósofo das dores urbanas. Cada verso seu é uma pergunta sem resposta. E talvez a beleza esteja nisso: em não saber, mas continuar tentando entender. É isso que ele nos ensina. Que viver é perguntar. E amar é insistir, mesmo quando tudo grita para desistir.

Esse disco ensina mais que muito livro. Porque a música é uma forma de filosofia que toca o coração antes da razão. E quando a gente sente primeiro, compreende melhor. A Legião Urbana conseguiu o que poucos conseguem: traduzir o inefável. Aquilo que está entre o silêncio e o grito. Entre o amor e o medo. Entre o agora e o nunca mais.

Há algo de eterno em tudo isso. Como se cada faixa fosse um fragmento de nós mesmos. Um reflexo das estações que vivemos internamente. Porque todo mundo tem sua primavera, seu verão intenso, seu outono de perdas e seu inverno de recolhimento. E esse disco nos faz atravessar todas elas.

E como é bonito atravessar. Mesmo que doa, mesmo que machuque. A travessia é o que nos transforma. E talvez a arte exista para isso: para nos lembrar que somos mutáveis, imperfeitos, profundos. Que somos mais que trabalho e rotina. Somos silêncio entre duas canções. Somos pausa. Somos poesia.

Em tempos de tanto ruído, um disco como esse é um suspiro. Um lembrete de que sentir não é fraqueza, é força. Que ser sensível é sobreviver ao caos. A Legião canta, e a gente respira junto. Porque, às vezes, é tudo que a gente precisa. Um verso que nos diga: você não está sozinho.

E é isso que fica depois que a última música termina. O silêncio parece mais cheio. A gente não ouve mais, a gente carrega. Como quem lê um bom livro e fecha a capa com saudade. O disco termina, mas algo dentro da gente continua tocando. E assim é a boa filosofia: não responde, mas transforma. Não encerra, mas inicia.

Então, que cada estação nos ensine. Que cada dor nos aproxime. Que cada verso nos salve. E que, como diria Renato, “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Porque talvez, na verdade, não haja mesmo. Mas enquanto houver música, haverá esperança. E isso já basta para seguir.

                                 

Bioque Mesito é poeta, autor de cinco

livros de poemas publicados

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog