VISITA NOTURNA

 

Gosto dos fantasmas
Que morrem de susto frente a um ser humano.
Seus lençóis se arrepiam de medo.
Noite dessas, um deles veio, trêmulo, me visitar:
Dá licença?
Entra, Manuel, você não precisa pedir licença.
Pensei que fosse o poeta Bandeira.
Era o Venturoso rei de Portugal.
No crachá dos fantasmas
Deveria constar o sobrenome.
Poetas e fantasmas têm algo em comum:
Ainda que falem até a exaustão,
Poucos percebem
Que eles existem.

 

 

NA ANTESSALA

 

Espalhei dezoito heterônimos
em ruas do Rio e Lisboa.
Todos eles, se reunidos,
não valem um só de Pessoa.

Trancafiei-me num mosteiro,
esperando de Deus um dom.
O que Ele me deu foi pastiche
da poesia de Drummond.

Ressoa na minha gaveta
um comício de versos reles.
Em coro parecem dizer:
Não somos Cecília Meireles.

O desavisado leitor
não espere muito de mim.
O máximo, que mal consigo,
é chegar a Antonio Secchin.

 

TODA LINGUAGEM


Toda linguagem
é vertigem,
farsa, verso fingido
no desígnio do signo
que me cria, ao criá-lo.
O que faço, o que desmonto,
são imagens corroídas,
ruínas de linguagem,
vozes avaras e mentidas.
O que eu calo e o que não digo
atropelam meu percurso.
Respiro o espaço
fraturado pela fala
e me deponho, inverso,
no subsolo do discurso.

                                                                                          

                                                                       


A GAVETA

 

A gaveta está trancada,
a chave levou Maria.
Nela guardados os planos
de quem já fui algum dia?
Decerto aí também mora
a linha da pescaria
que mirou no meu futuro,
mas errou a pontaria.
Desconheço se ela abriga
alguma mercadoria
dispondo de mais valor
que um pardal na ventania.
Mas por que agora eu escuto
numa quase litania
as vozes que dela saem
e se engrossam em gritaria?
Chamo então um bom chaveiro
da Europa, Olinda ou Bahia,
para arrombar a gaveta,
pois lá do fundo eu traria
a chave de algum passado
que aprisionado me espia.
Chega um e chegam dez
chaveiros em romaria.
A gaveta a todos eles,
um por um, derrotaria.
São bem fracos contra a força
e a resistência bravia
que a tal fechadura impõe
frente a tal cavalaria.

 

 

O ESPELHO DE DONIZETE

 

Em nenhum espelho
ficou impressa tua face.
Mas na tua poesia
uma força feroz se demonstra,
revivendo a rosa fria
que não se entrega à morte
nem se rende à ventania.
Os cacos da voz dispersos
no jorro de tua poesia
me tornam teu irmão urgente
numa saudade tardia,
que pode ser inconstante,
mas jamais será fugidia.
Contra a treva da noite opaca
sinto a luz que prenuncia
teus versos me precipitando
no difícil coração da alegria.

 

 

                                                           

LÍNGUA NEGRA, RIO 30 GRAUS

 

Bem longe explode em preto
a pele cósmica de uma estrela,
aqui arde em silêncio
a pele grossa de uma vela.
Negra é a língua que se enreda
para um salto sem saber o que a espera.
Negra, negra língua,
com seu gosto de esgoto e de quimera.
Língua que se desfaz, liquefeita,
na cachaça trôpega dos bares da favela.
Língua que ao pó retorna, heroína
celebrada na veia aberta das vielas.
Passos que galopam para o abismo,
expulsando a pontapés a primavera.
Um fio de luz desmancha o frio.
Anoitece no Rio de Janeiro.

 

 

UMA PROSA SÚBITA 

                              Se não for para arder,
                             ser rosa no inverno de que serve?
                                      (Eugénio de Andrade)

Uma prosa súbita
para a rosa de neve:
às vezes é só um verso
onde a voz de Andrade ferve.
E perdura, apesar do inverno
armado na paisagem:
o que há pouco era flor
virou arte,
rosa em riste na beira do abismo
contra
o silêncio azul da tarde.

 

 

POEMA PROMÍSCUO

 

Disseram que voltei muito mecanizado,
com ritmo correto, muita rima rica,
que não tolero nada que não seja aquilo
que seja exatamente o que o Bilac dita.

Disseram que com a forma estou bem preocupado,
e corre por aí, com a maior certeza,
que muito pouco vale tanta velharia
de alguém que ainda pensa em produzir beleza.

Não sei o que o futuro guarda de armadilha,
porém não vou ficar parado, e prisioneiro
de quem, pajé pujante em sua antiga taba,
dali pretende governar o mundo inteiro.

Pra cima da poesia não vale esse veneno,
que já destila seu sabor de cianureto.
Enquanto a tribo grita “Por aí não passa”,
passa um poema concreto ao lado de um soneto.

 

 

CINZAS


Talvez o verão tenha queimado os frutos.
As mãos, ressequidas, apenas recolhem restos.
Cinzas, ardores, ossos.
Havia ali,
não se lembra?,
um rumor de desejo,
que nenhuma palavra salva:
todo poema é póstumo.
Botei a boca no mundo,
não gostei do sabor. Ostras e versos
se retraem
ao toque ácido das coisas tardias.
Na sombra insone do meu quarto,
o vazio vigia, na espreita do que não há:
por aqui passaram
pássaros que não pousaram. Fui traído
por ciganas, arlequins e cataclismos.
De nada me valeram
guardar relâmpagos no bolso,
agarrar nas águas as garrafas náufragas.

 

 

RECEITA DE POEMA

 

Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.

Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E depois que tudo matasse
morresse do próprio veneno.

 

 

                                                           



SONETO PROFÉTICO

 

A bola de cristal é opaca e preta,
nela pouco se vê ou se pressente.
O vidro estilhaçado de uma greta
libera a luz noturna do presente.
Antevejo a raiz de uma semente
incapaz de dar paz a este planeta,
pois você, o jasmim e a violeta
florescem contra mim feito serpente.
Enxergo nada além desse horizonte,
onde ao escuro sucede o mais escuro.
O certo é não prever nenhuma ponte
que possa me levar ao seu futuro.
Na bola opaca eu leio, transtornado:
seremos bem felizes no passado.

 

 

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AUTORRETRATO

                    a Flávia Amparo

 

Um poeta nunca sabe

onde sua voz termina,

se é dele de fato a voz

que no seu nome se assina.

Nem sabe se a vida alheia

é seu pasto de rapina,

ou se o outro é quem lhe invade,

numa voragem assassina.

Nenhum poeta conhece

esse motor que maquina

a explosão da coisa escrita

contra a crosta da rotina.

Entender inteiro o poeta

é bem malsinada sina:

quando o supomos em cena,

já vai sumindo na esquina,

entrando na contramão

do que o bom senso lhe ensina.

Por sob a zona da sombra,

navega em meio à neblina,

mesmo que seja pequena

a poesia que o ilumina.

  


Antonio Carlos Secchin nasceu em 10 de junho de 1952, no Rio de Janeiro. Doutor em Letras, é professor emérito da UFRJ e, desde 2004, ocupa a cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras. Publicou João Cabral: a poesia do menos (1985), Todos os ventos (2002), Escritos sobre poesia (2003), Desdizer (2017) e Percursos da poesia brasileira (2018), entre outros. Sua obra foi celebrada pela crítica e premiada por instituições como a ABL, a APCA e a Biblioteca Nacional.

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